Documentário sobre John Galliano no MUBI

Em fevereiro de 2011, John Galliano foi preso depois de proferir ofensas racistas a duas pessoas asiáticas no bar La Perle, em Paris. Foi um escândalo, porém, ele foi solto. No dia seguinte, o The Sun publicou outro vídeo que aconteceu em dezembro de 2010, quando ele insultou num grupo de mulheres judias no mesmo local. Falou: ‘Eu amo Hitler… Pessoas como você seriam mortas. Suas mães, seus antepassados seriam f… nas câmaras de gás”. Detalhe: foram três momentos envolvendo ele e outras pessoas no mesmo bar.
Ele foi demitido da Dior. Processado e condenado por crime de ódio e comportamento antissemita. Também foi multado em €6,000. Sua defesa alegou que ele estava alcoolizado.

Ascenção e Queda – John Galliano (2023) @ Reprodução

Este é o ponto de partida do documentário “Ascenção e Queda – John Galliano”, dirigido por Kevin MacDonald (“Whitney” e “Marley”, produção da Condê Nast Entertainment (dona da Vogue) e disponível no @ mubibrasil.
Frente às câmeras, John Galliano conta a versão da sua história.

Origem

Juan Carlos Antonio Galliano Guillén nasceu e cresceu numa família pobre num vilarejo chamado Passagem Sefardita, na região de Gibraltar, território ultramarino britânico localizado no extremo sul da Península Ibérica. Aos seis anos, a família se mudou para Londres. Ele falava inglês com o pai e espanhol com a mãe. Ambos eram muito rígidos. O pai se recusava a aceitar sua homossexualidade. E mãe também, porém, ela um pouco mais tolerante. Para se proteger, ele mergulhava no universo da fantasia, cinema, arte… E desenhava.

Dior Fall 1997 @ Getty

Nos anos de 1980, Londres sofria com o governo linha dura da Primeira Ministra Margareth Thatcher, que defendia políticas ultraliberais e ultraconservadoras, apoiando privatizações, livre comércio e total austeridade da política econômica, reduzindo gastos, principalmente, com programas sociais. Também se opunha aos movimentos das femininas e dos trabalhadores. Por outro lado, a juventude se revoltava. Com o fim da Era Disco, a Inglaterra se preparava para uma segunda invasão cultural (a primeira foi nos anos de 1960 com The Beatles e The Rolling Stones), com nomes como Eurythmics, Depeche Mode, Cultura Club, New Order, etc.

Dior Fall 1998 @ Getty

Neste cenário, John Galliano conseguiu uma bolsa de estudos no Central Saint Martins of Arts, onde respirou estes ares de mudanças. Na moda, o movimento punk dava as caras, assim como os New Romantics começava sua caminhada – subcultura inglesa caracterizada por roupas extravagantes e excêntricas inspiradas pelas plásticas do século 18.
Um dia ele assistiu ao longuíssimo filme “Napoleão” de Abel Gance, de 1927, no The Barbican. As 5h de duração foram impactantes para sua formação – tanto pessoal quanto profissional. Ficou obcecado por aquele período (1799 a 1815).

Dior Fall 1999 @ Getty

“Les Incroyables” se tornou o nome de sua coleção de formatura em 1984. Incroyables eram precursores do dandismo e começaram a aparecer em Paris em 1894, exibindo casacos redingote (riding coat, casaco de montaria, longos, trespassados, ajustados no busco e largos na parte de baixo), calças de veludo ajustadas e meias de seda brancas. Os cabelos em entrelaçados com fitas, formando pequenas tranças. Usavam com chapéus exagerados e enfeitados com plumas.

Dior Fall 2000 @ divulgação

No Brasil, influenciados por aquele estilo, jovens usavam casacos, trench-coats, blazers com ombreiras, camisas longuíssimas que desciam abaixo da coxa, mangas compridas e calças baggys. Os mais abusados completavam o look com colares de pérolas usados como broches e boinas na cabeça (Nota do editor: eu me lembro de que, minha mãe comprou camisas numa boutique do centro de Campinas. Fiquei fascinado. Aos poucos, fui me apropriando de cada uma delas para me jogar nas pistas de dança de uma boate LGBTQIAP+ chamada The Club).

Dior Fall 2001 @ Getty

Galliano começou a chamar a atenção. Caiu nas graças de André Leon Talley, editor de moda da Vogue, assim como de Anna Wintour, a editora-chefe da mesma publicação. Finalizou 1987 ganhando o Prêmio de Estilista Britânico do ano.
Apesar do momento criativo, ele não vendia. Suas roupas não eram bem compreendidas pelo público. Depois de encerrar os desfiles, se sentava no ateliê e começava a beber. Muito. Seu patrocinador caiu fora. Sem dinheiro, pulou uma temporada de desfiles.

Sucesso

Christian Dior Fall 2002 @ Getty

Graças a ajuda de André e de Anna, conseguiu produzir uma nova coleção, no qual seria apresentada num hotel-chatéau de uma milionária. Despertou atenção do poderoso dono da LVMH, Bernard Arnault, que o convidou a trabalhar na direção criativa da Givenchy. O primeiro desfile foi um sucesso além do esperado. Foi convidado a assumir a poderosa Dior.

Dior Fall 2003 @ getty

Era 1996. Começava a segunda revolução da grife (a primeira foi com o New Look criado por Chistian Dior em 1947).
Entre 1998 e 2005, as receitas da Dior triplicaram. Galliano assinava 32 coleções para a Dior e para sua marca homônima (Alta Costura, Prêt-à-Porter, Masculina, Alta Joalheira, Infantil, Preview, Resort, assessórios, etc). Acompanhava os processos de criação das campanha publicitárias, palpitando nas escolhes de fotógrafos, modelos, equipe de produção, maquiagem, etc.

Dior Fall 2004 @ Getty

Suas apresentações eram ansiosamente esperadas, uma vez que ele entendia como poucos o conceito de show. Outras marcas seguiram o fluxo. A indústria da moda ganhou um status até então inédito. Astros e estrelas de Hollywood e da música dividiam seus lugares nas cadeiras da primeira fila dos desfiles com socialites, colunáveis e jornalistas especializados (lembre-se que não existiam blogueiras ou influenciadores digitais na época), como Anna Wintour, Hilary Alexander, Cathy Horin, Tim Blanks, Andre Leon Talley e Suzy Menkes.

Dior Fall 2004 @ Getty
Dior Fall 2004 @ Getty

Marcas se transformaram em grifes (Marca é para vender. Grife é para provocar desejo). Começaram a disputar vaga para vestir celebridades nos tapetes vermelhos das grandes premiações, como Oscar, Globo de Ouro, Grammy, Festival de Cannes, etc.
Supermodels, como Naomi Campbell, Cindy Crawford, Christie Turlington, Claudia Schiffer, Linda Evangelista dividiam holofotes para Kate Moss, Julia Roberts, Michelle Pfeiffer, Nicole Kidman, Brad Pitt e Tom Cruise, que estrelavam milionárias campanhas de roupas, perfumes, óculos, bolsas, beleza, entre outras.

Dior Fall 2006 @ getty

A revista Vogue América viveu seu auge. Em parceria com o canal VH1, criou uma premiação chamada Vogue Fashion Awards, que celebrava ‘o melhor’ do ano. Gisele Bundchen ganhou como Modelo do Ano em 1999. Em seguida, transformou a edição de setembro em objeto disputado no mercado publicitário.

John Galliano @ Getty

John Galliano estava no auge. Encerrava os desfiles com surpreendentes aparições. Usou fantasia de Napoleão, astronauta, desceu de uma carruagem, caminhou ao lado de seguranças… Ganhou status de rock star. O que começou com uma diversão, tornou-se petulante. Enquanto a plateia adorava, a imprensa começava a se entediar.

Queda

Ele saboreava a tudo com grande intensidade. Como uma alternativa para suportar tamanha pressão, bebia. Muito. Era um alcoolista. Pior: em negação. Começou a destruir quartos de hotéis. Amigos começaram a perceber que as coisas estavam saindo do normal. Assim como seus chefes. Era o sinal amarelo.

Dior Fall 2007 @ getty

Desde o início de sua carreira, Steven Robinson tornou-se seu assistente de confiança. Passou a dividir também funções criativas. Nos desfiles, atuava como chefe da produção, vistoriando cada detalhe. Na vida pessoal, ajudava-o nos porres e surtos. Tornou-se uma personagem vital em todo o processo.

Dior Fall 2008 @ Getty

Era uma relação de amor, porém, segundo amigos, sem quaisquer envolvimentos romântico ou sexual. Ambos eram viciados. John em bebidas, remédios (Valium, Bometo, Lexomil…) e trabalho. Steven, em cocaína e… em Galliano.

Dior Fall 2009 @ Getty

Pouco depois da apresentação da coleção Alta Costura 2007, Steven foi para casa. Seu corpo foi encontrado caído na escada cercado com muito sangue. Teve uma overdose. Na época, porém, diretores da LVMH disseram que a causa da morte era um ataque cardíaco. Ele tinha 38 anos.

Dior Fall 2010 @ Getty

Devastado, a saúde física e mental de John foi piorando. Começou a faltar no trabalho (lembrando que era trabalhador compulsivo). Perdeu o freio, soltou a língua e começou a falar mal de todo mundo. Depois que sua assistente contou aos chefes o que estava acontecendo, foi despedida. Os chefes, porém, planejavam dar uma licença de seis meses. E envia-lo para uma clínica de recuperação.
Em fevereiro de 2010, o estilista britânico Alexander McQueen, que assumiu seu lugar na Givenchy, cometeu suicídio em seu apartamento em Paris. Isso também foi devastador.

Um ano depois, John Galliano foi preso em Paris. Tornou-se um escândalo internacional. Representou o final de uma Era.

Ascenção e Queda – John Galliano (2023) @ Reprodução

Em entrevista à revista Variety, Kevin Macdonald disse que seu objetivo é que o público chegue às suas próprias conclusões sobre Galliano e, principalmente, sobre os acontecimentos que motivaram sua queda, os comentários antissemitas e racistas gravados em vídeo. “Quero apresentar os indícios e permitir que as pessoas os questionem e discutam.” Segundo o diretor, o estilista sabe que não tem como escapar do que fez. “Ele me disse: ‘Eu não estou fazendo o filme porque quero ser perdoado. Estou fazendo para ser um pouco mais bem compreendido’.”