Um clássico da TV brasileira: ‘Vale Tudo’

A segunda reprise de Vale Tudo no Canal Viva terminará no sábado, 09 de fevereiro de 2019. Com ótimos índices de audiência para o horário 0h30, a novela concorre com “Roque Santeiro” e “Tieta” como a Melhor Novela da TV brasileira no século XX (“Avenida Brasil” ostenta o título de melhor do século XXI).
Escrita entre 1988 e 1989, a trama continua atual e oportuna com seus questionamentos sobre honestidade, corrupção e oportunismo, com a clássica pergunta: ‘Vale a Pena ser honesto no Brasil’?

Hoje, a pergunta poderia ser: ’31 anos depois de Vale Tudo, quem levantaria a mão afirmando ser 100% honesto no Brasil?’

  • Aquele que compra seguidores para se tornar um ‘influencer’ de sucesso;
  • Aquele que falsifica carteira de escola para pagar meia no cinema/teatro/show;
  • Aquele que transita pelo acostamento nas estradas;
  • Aquele que não devolver quando recebe troco errado;
  • Aquele que fura fila de entrada para espetáculos;
  • Aquele que para o carro em vaga para idoso ou deficiente;
  • Aquele que encosta e dá farol alto nos carros que dirigem na velocidade correta nas estradas;
  • Aquele que coloca itinha do Senhor do Bonfim sobre a placa da moto;
  • Aquele que abre embalagem de biscoito ou bala antes de passar no caixa;
  • Aquele empresário que cobra mais caro por um produto de ‘acordo com a cara do cliente’;
  • Aquele que forma fila dupla para pegar os filhos na escola?
  • Aquele empresário que cobra uma taxa de 300% em cima de um produto;
  • Aquele empresário que aumenta o valor do produto uma semana antes da Black Friday para justificar o ‘desconto’ no momento da promoção;

Ou seja: qual é o seu delito preferido? Ou são vários?

Regina Duarte e Gloria Pires em Vale Tudo (1988) @ Reprodução

Esses exemplos estão tão arraigados no dia-a-dia do brasileiro que as pessoas acreditam que estes delitos são ‘pequeno’, ‘inofensivo’, ‘algo menor’…
Nem vou entrar no mérito daqueles que ficam ‘Virados na Jiraya’ quando comentam sobre os casos de corrupção nos governo federal, estadual e municipal, mas já tentaram subornar policial rodoviário, pagaram um ‘caixinha’ para conseguir vaga na disputada escola para o filho, desviaram caixa dois para não pagar imposto…
Pois é, meus caros, o sucesso da novela ‘Vale Tudo’ se deve ao fato de mostrar que o Brasil é um país de pessoas com ética altamente questionável.
Seja na pele da vilã, Odete Roitman, que vertia prepotência, preconceito e arrogância, que munida com a ideia de ‘quero o melhor para meus filhos’ usou e abusou da falta de escrúpulos para tais fins. Muita gente pensa como ela.
Ou da arrivista Maria de Fátima, que no desejo de ‘quero arrumar marido rico’, pisou e sambou na cara do movimento feminista com um pensamento machista e antiquado de enriquecimento feminino sem muito esforço. Continua uma ‘musa’ em muitos setores sociais, pois, no fundo, muitas mulheres (e homens) ainda acreditam que esta é a meta de vida.
E o que dizer do cínico e corrupto Marco Aurélio, que era especializado em ‘desviar uma verba’ da empresa que trabalhava e que terminava a novela dando uma banana aos trouxas que ficaram no Brasil, enquanto fugiu no avião particular ao lado da esposa assassina? Foi o final mais realístico de uma obra de ficção feita no Brasil.
Ainda sobre corrupção, o que mudou no Brasil desde então?

Gloria Pires e Cassio Gabus Mendes em Vale Tudo (1988) @ Reprodução

Crônica de Uma Época

Atuações memoráveis das atrizes Gloria Pires, Beatriz Segall (seu melhor momento profissional), Renata Sorrah, Nathália Timberg, Cássia Kiss e Lilia Cabral. Reginaldo Faria também garantiu seu melhor momento, dando um show de cinismo e amoralidade.
Quanto ao casal de protagonista… Antônio Fagundes fez o que pode ao ficar preso num papel muito mais escrito. Mas pior mesmo foi Regina Duarte. Assumidamente exagerada (com raríssimas exceções), ela optou pelo overacting.

Exagerada do começo ao fim, ela garantiu uma chatice absurda a uma personagem que poderia ser ótima na defesa da ética e honestidade. Nesse campo, num papel menor, Lídia Brondi, no auge do carisma, mostrava-se mais natural na defesa do mesmo ideal.

Curiosidade: na época, na mesma faixa etária – e com talentos acima da média – Glória Pires e Lídia Brondi competiam pelos mesmos papéis. Elas também eram atrizes com estilo mais naturalista, mostrando-se modernas e antenadas.
Mas o grande mérito de ‘Vale Tudo’ é o excelente texto de Gilberto Braga, com auxilio de Aguinaldo Silva e Leonor Basseres.
Na época, com trânsito pela sociedade carioca, Gilberto Braga era uma espécie de cronista social dos colunáveis. Seus personagens frequentavam festas de Ricardo Amaral, eram amigos de Danuza Leão, citados na coluna do Ibrahim Sued, etc. Ele foi um perfeito analista de uma Era do país.
Numa época anteriores à internet, redes sociais, etc, ainda não existia esta obsessão em se tornar Celebridade. Ainda não se falava sobre os Emergentes. Esse povo ganhou surgiu com a ascensão ao poder de Fernando Collor em 1990 – responsável também pela explosão da música sertaneja.

Coluna Social se alimentava da vida dos ricos. Ou, quando muito, de artistas de sucesso. Mas o espaço reversados a eles era nas Revistas Amiga ou Manchete. A Revista Caras surgiria quatro anos depois.
Ou seja, em 1988, existia um fascínio saber como era a vida dos ricos. Sabendo disso, Gilberto Braga se especializou nesse tipo de personagem, criando grandes personagens. Nenhum outro autor soube fazer isso tão bem.
Na época, todo mundo assistia novelas sentados no sofá. Ricos, quando questionados, contavam que “viam alguma coisa quando passavam pelo quartinho da empregada”. Mentira. Rico assistia novela, sim!
Em dezembro de 1989 o Governo introduziu oficialmente a TV a cabo no País. Com mais de 100 canais como opção, público mudou. As novelas foram se adequando ao que sobrou de público na TV aberta.
Perdeu-se o conceito da sofisticação. Ricos cederam espaço para uma nova classe média que surgia, no qual o conceito de Mostrar era mais importante do que Ser ou Ter. Favelas começaram a se tornar cenários de tramas, mostrando novas realidades, incluindo a violência urbana.
Com a mudança do público, as novelas foram se transformando.

Moralidade questionável

Gilberto Braga sentiu isso quando fez ‘Babilônia’, em 2015. Com um texto moderno e sofisticado sobre a vida de três mulheres de diferentes origens, a novela foi um retumbante fracasso.
Prometendo um grande personagem, Glória Pires surgia como uma mulher rica, sofisticada e livre chamada Beatriz. Dona do seu corpo e do seu desejo, fazia sexo com quem bem quisesse.

 

Duas referências no cenário cultural brasileiro, Fernanda Montenegro surgia casada com Nathália Timberg e, logo no primeiro capítulo, o casal deu um lindo beijo na boca. Foi um choque.

A novela foi bombardeada a ponto do autor ser obrigado a mudar a estória. A personagem de Gloria mudou de rumo. Perdeu sua essência e se transformou numa ‘vilã’. Pior: sem graça.

Fernanda e Nathália nunca mais se beijaram. Nunca mais foi visto qualquer afeto entre ambas. Com a mudança, elas poderiam ser confundidas com duas ‘amigas’ que dividiam o mesmo teto. Se não fosse o calibre das duas atrizes veteranas, corria-se o risco das personagens sumirem na trama, tamanha a modificação que passaram.
Gilberto foi muito criticado na época, inclusive por esse jornalista aqui. Eu o acusei de vendido. Porém, reconheço que as críticas foram injustas.
Gilberto acreditava que o público da TV aberta do Brasil de 2015 aceitaria assuntos mais adultos. Ledo engano. O público que ele focou foi aquele que maratonava séries ‘Sex And The City’, que durante seis temporadas (1998-2014), mostrou um ABC de assuntos da sexualidade feminina com uma liberdade que jamais veremos ir ao ar às 21h na maior emissora de TV aberta do Brasil.

Este público ganharia ainda outro espaço para se acomodar: os canais dos serviços de streaming, com uma gama muito mais de obras que provocam discussões e debates nas redes sociais.

Quanto ao brasileiro… Você realmente acredita que ele deixou de ser antiético e desonesto? Ou agora, também se apropriou do conceito da religiosidade para maquiar quem, no fundo, ele continua sendo?