Epitáfio: eu e as Barbies

Inicialmente eram três ou quatro… No final, entre 50 a 60 bonecas. Assim foi minha história com a Barbie. Vamos à historinha:
Certo dia, quando era criança uma vizinha apareceu com uma boneca Suzy. Fiquei encantado. Não queria devolvê-la. Minha mãe teve que interceder. Durante anos desejei ter, porém, quem surgiu foi o Falcon. Era o modelo paraquedista. Fiquei bem animado subindo em todos os lugares possíveis para ver se o paraquedas abriu. Até o tentei pelo telhado. Nada.
Algum tempo depois, minha mãe voltou a estudar. Era um programa governamental chamado Mobral que tinha a pretensão de “conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida”, segundo consta no site EducaBrasil. Encontrei um relato escrito por ela que contava sobre uma boneca de papel chamada Emília que foi perdida durante uma chuva. Fiquei muito tocado com aquilo.
Em 1986, num dos primeiros salários no meu primeiro emprego CLT – repositor do departamento de presentes das Lojas Americanas do calçadão do centro de Campinas – comprei uma Barbie para presenteá-la no Dia das Mães. Contei que tinha lido seu relato e o quanto aquilo me comoveu. Ela adorou. Colocou a boneca na caixa ao lado do aparelho de televisão em seu quarto.
A boneca ficou guardada na caixa por alguns anos até que tive a ideia de fazer um ensaio fotográfico usando-a, ao lado de um duende, o Falcon, pedaços de couro e um porsche vermelho da Glaslite movido a fricção (da minha infância)… Era um clima S&M… Bem fetichista… Infelizmente, os registros foram para o lixo.

Moulage

Depois de sua estreia como modelo, eventualmente comecei a fazer roupas a partir de meias, lenços, pedaços de cortina de voil ou renda e outros tecidos que foram surgindo. Como nunca soube costurar, usava a técnica do ‘moulage’ (rs), no qual usava o corpo da boneca como molde para costurar as roupas à mão. Roupa pronta, a boneca voltava à caixa em seu lugar original.
Muitos anos depois, contei para dois amigos sobre minhas aventuras como estilista. Um deles revelou que sempre teve vontade de fazer isso. Surgiu a ideia de fazermos um desfile, no qual, cada um apresentaria suas ideias. Comprei quatro Barbies e um Ken e ele comprou três. Cada um criou a fundo, passarela, trilha sonora…

1999 Jorge Marcelo e as Barbies @ Acervo Pessoal

Num domingo qualquer em 1997, depois de um delicioso almoço feito pelo segundo amigo, aconteceu os dois desfiles com uma infinidade de roupas. Durou uma eternidade. Porém, gostamos da brincadeira. Decidimos que faríamos outro para a próxima estação.
Meses depois, uma amiga Sandra Sousa, se juntou ao nosso evento. Outras bonecas também foram compradas. Fizemos um número menor de looks para dar agilidade ao desfile.

Evento social

Contamos para outras pessoas que se empolgaram para assistir. Assim, o apartamento da Monalisa e da Gabi se tornou locações para os próximos desfiles, que também ganharam bebidinhas e comidinhas. E público… Inicialmente, erámos três. Com o tempo, 10, 20, 30, pessoas…

2002 Desfile Barbies Apartamento Mona e Gabi (Agosto) @ Acervo Pessoal

E das cinco, cheguei a ter umas 50 Barbies: loiras, latinas, ruivas, orientais e pretas – as mais complicadas de encontrar, na época. Detalhes: todas eram originais. Recusava-me a ter genéricas, que ganharam o apelido de ‘vilãs’. Depois dos desfiles, elas eram colocadas em duas caixas de madeira, que o Flávio me presenteou.

2004 Desfile Barbies na casa do Kurlan (Janeiro) @ Acervo Pessoal

Naquele momento, mudando os rumos da minha vida profissional, entrei numa ONG de Direitos Humanos e uma demanda de trabalho tomou um tempo muito maior do que seria o ideal. A parte mais importante foi conhecer Flávio Casagrande, o amor de minha vida, em setembro de 2004.
Totalmente envolvido com a ONG, eu e meu amigo resolvemos fazer o próximo desfile para o ‘novo’ público. Antigos convidados receberam convite, porém, recusaram. Porém, não me lembro do que exatamente aconteceu, porém, não gostamos da apresentação.
No mesmo dia da apresentação, fomos entrevistados por um colaborador do site Mix Brasil. A pauta era sobre o desfile. Meu amigo se recusou a aparecer. Sendo assim, fui fotografado com as bonecas Barbies mergulhadas em mim num sofá.

2004 Mix Brasil – Cultura GLS Especial – 21.09 @ Acervo Pessoal

Apesar da empolgação em ser personagem de uma matéria no site, o resultado me deixou desconfortável.
Eu me lembrei de uma entrevista feita no programa do Jô Soares com um colecionador de Barbie e o quanto o apresentador foi cruel com o rapaz. Ele foi colocado no papel de ‘bicha exótica e excêntrica’. Lembrando que era outra época na TV brasileira, no qual raramente alguém se posicionava frente ao combate da homofobia, a entrevista foi um caos total. E aquilo me incomodou muito.
Apesar disso, agendamos o próximo desfile, Ao contrário das edições anteriores nas quais eu fazia coleções pensando nas temporadas de verão ou inverno, resolvi algo diferente. Seria o canto do cisne.

Exposição em Shopping

Mergulhei em livros e sites sobre história da moda. O objetivo era contar o que aconteceu de mais relevante na moda em nove décadas do século XX.
Foi um desafio escolher um modelo de roupa que se adequasse ao tecido que seria costurado no corpo da boneca. Assim como as anteriores, eram roupas que teriam que ser usadas e retiradas. Lembrando que não era qualquer tecido no qual isso funcionava.
Foram meses testando, errando, desfazendo, jogando fora… Até acertar. A segunda parte era preparar os acessórios, como chapéus, arranjos para cabeça, sapatos, bolsas, sombrinhas, óculos, etc. Gostei do resultado. Vendo as fotos, vejo o quanto fui dedicado àquilo.
A apresentação aconteceu no dia 19 de dezembro de 2005 no apartamento das queridas Monalisa e Gabriela. Convidamos pouquíssimas pessoas. Meu amigo apresentou seu desfile e na sequência apresentei o meu. No final, avisei que aquele seria o último.

2005 Desfile Barbies no apartamento Mona e Gabi (Dez) @ Acervo Pessoal

Depois daquele dia, as bonecas voltavam às caixas de madeiras. Alguns meses depois, escrevi um Workshop de Produção de Moda e de Figurinos. Escolhi algumas para ilustrar o momento no qual contava sobre as roupas de cada década do século XX. Assim, elas se tornaram material para minhas aulas e também materiais em jornais e revistas de Campinas.

2006 Caderno Cidades – Correio Popular (30 de Abril) @ Humberto de Castro

Em 2007 fui contratado para apresentar quatro sessões semanais de filmes sobre moda num shopping da Região Metropolitana de Campinas. Como um ‘plus’, as bonecas estariam numa exposição que aconteceu num dos corredores do mesmo.
No caminho para a abertura, Flávio fez um questionamento se aquilo (a exposição) era bacana de fazer. Não me lembro do que respondi, mas fiquei pensando.
O evento também contou com mega fotos de produções de moda do fotógrafo Touche. Alguns amigos foram nos prestigiar, assim como colegas de imprensa. O evento ganhou espaço em matérias de TV, jornais e sites.

Finde tempo de exposição, com as bonecas de volta às caixas em minha casa, aguardei o dia do pagamento pelo Job. Ele não aconteceu. Alias, foi a primeira vez que contratei um advogado para receber um cachê. As matérias de jornais e TV serviram como prova para dar base ao processo. Ganhei. Porém, recebi em dez parcelas.
Recebi outros convites para levar a exposição para outros locais – incluindo num shopping no Litoral Sul de São Paulo. Recusei todos.
Naquele momento estava trabalhando como produtor de moda para uma revista voltada a condomínios fechados da RMC e também estava migrando o MONDO MODA, que mudava de blog para se tornar um Portal. Era o momento de uma grande mudança profissional estava apenas começando.

Elena e Helena

Muitos anos depois, um dia resolvi me desfazer das Barbies. Através das redes sociais e sites de comercio livre, rapidamente vendi as pretas e as asiáticas. Vendi outras também.
Há dois anos, presentei Elena, a filha de uma amiga com uma boneca de cada raça. Em seguida, as remanescentes foram presenteadas à minha sobrinha-neta Helena.
Curiosamente, Elena e Helena são as atuais donas das Barbies que um dia pertenceram à uma coleção, que nem foi planejada.
É sobre isso!