No cemitério do Valhalla Memorial Park, em frente ao Aeroporto de Burbank, encontra-se uma pequena placa com o título: “Madame Sul-Te-Wan, Nellie Crawford Conley, celebrada pioneira & atriz, amada mãe e avó, 1873, Louisville, KY, 1959”.
E quem seria Madame Sul-Te-Wan, sepultada no mesmo local de variadas celebridades da indústria de entretenimento dos EUA?
Ela foi a primeira atriz preta contratada por um estúdio de Hollywood. Detalhe: em 40 das suas 54 atuações, seu nome não foi creditado.
Nascida Nellie Crawford, em 7 de maio de 1873, em Louisville, Kentucky, filha de pais escravizados. O pai, Silas Crawford, abandonou sua mãe, Cleon De Londa, que a sustentou trabalhando como lavadeira de atrizes de teatro da cidade.

Por vezes levava a jovem Nellie consigo ao trabalho. Assistir aos ensaios, ver roupas deslumbrantes e acompanhar de perto a vida daquelas mulheres despertaram o desejo na menina em se tornar uma daquelas figuras fascinantes sob os holofotes.
Algumas das atrizes repararam que ela não era tímida. Convenceram um diretor a permitir que garota participasse numa audição para um concurso de dança. Ela ganhou o primeiro lugar. Era seu primeiro caminho para os palcos.

Em Cincinnati, juntou-se ao grupo teatral “Three Black Cloaks”, e mais tarde percorreu a Costa Leste com o seu próprio grupo de dança, “Black Four Hundred”, sob o nome artístico de “Creole Nell”.

Casou-se com Robert Conley e mudou-se para a Califórnia em 1910. Assim como seu pai, o safado a abandonou. Detalhe: três semanas depois do nascimento do terceiro filho. Ficou desesperada. As agências de espetáculos locais simplesmente recusavam-se a contratar “artistas de cor”.

D. W. Griffith estava no meio das filmagens do polêmico “O Nascimento de Uma Nação — considerado ao mesmo tempo uma obra-prima técnica e “o filme mais racista da história”, segundo Ed Rampell, no Washington Post.
Como observa a pesquisadora Charlene Regester, autora de “African American Actresses: The Struggle for Visibility, 1900—1960”, existem diferentes versões sobre o que Nellie fez para chamar a atenção dele — uma das estórias conta que ficou desfilando pelo estúdio usando “um turbante de cetim vermelho, longas tranças brilhantes que quase lhe chegavam aos joelhos e grandes brincos dourados”.
Deu certo. Ele deu-lhe um emprego, pagando-lhe um salário de U$ 3 por dia. Essa proposta acabou por evoluir para um contrato de U$ 25 por semana, escreveu o pesquisador de cinema, Ashley Clark.

Griffith teria escrito um papel muito mais substancial. Ela deveria interpretar uma rica proprietária negra, desfilando pela cidade com roupas e joias elegantes. Quando uma mulher branca a despreza, Nellie retribui a ofensa cuspindo-lhe na cara. Aparentemente, a cena foi cortada pela censura, relegando-a ao papel de uma figurante não creditada.
Mesmo assim, com esta aparição e uma carta de recomendação de Griffith, Nellie conseguiu outros trabalhos. Isso a transformou na primeira mulher preta contratada por um estúdio de Hollywood.

De 1916 a 1924, esteve em participações não creditadas em nove filmes. Em “The Lightning Rider”, seu nome finalmente apareceu com a personagem “Mammy”. Porém, seu nome sumiu dos créditos nos próximos 14 filmes.
Em 1937, pelo papel em Hattie, no filme “The Old Chicago”, Nellie foi creditada como Madame Sul Te Wan.

Ninguém sabe ao certo quando ou porquê adotou este nome. Teria sido uma jogada estratégica para criar mistério? Ou um artifício para poder interpretar papéis de diferentes etnias, sugerindo origens asiáticas ou nativo-americanas?
Charlene Regester acredita que tudo isso pode ser verdade. O nome escolhido poderia ser uma alusão a uma suposta ascendência mista (ela insinuava que o pai teria sido ministro hindu) ou uma estratégia de marketing.

Com o ‘novo’ nome, entre 1938 a 1958, apareceu em 22 filmes e séries de TV, porém, somente em quatro teve o nome creditado. Suas personagens eram de mulheres escravizadas ou indígenas, empregadas, cozinheira, feiticeira, etc.
Em 1954, participou do celebrado “Carmen Jones” como a avó de Carmen, contracenando com Dorothy Dandridge, Harry Belafonte, Diahann Carroll e Pearl Bailey. Apesar de ser um filme com elenco majoritário negro, seu nome não recebeu crédito.

Aos 85 anos, foi chamada para interpretar uma feiticeira num piloto em três partes de uma série de 1958 chamada “Tarzan o os Caçadores”. Foi seu último trabalho. Faleceu em 1 de fevereiro de 1959.
Foi uma carreira marcada por determinação, paixão e muita resiliência contra todas as adversidades de uma indústria marcada por muitas injustiças.
Sul-Te-Wan raramente era (ou continua sendo) mencionada na imprensa branca dominante, a não ser em listas ocasionais de elenco. Mesmo ignorada pelas publicações de cinema tradicionais, ela tem espaço na imprensa negra.
Jornais como o California Eagle, por outro lado, destacavam seus projetos, sua vida pessoal e o início da carreira cinematográfica do seu filho Onest. Nessas páginas, era uma verdadeira lenda viva. Para os leitores, era profundamente admirada.
Em 1986 o nome de Madame Sul-Te-Wan foi incluído no Black Filmmakers Hall of Fame, Inc, projeto, que, desde 1974, promove e reconhece a importância de artistas pretos pioneiros na história do cinema e tv dos EUA.

A um só momento, é uma história tanto admirável, emocionante, como triste. Tantos anos depois e só agora estamos vendo um protagonismo real de artistas pretos na TV e no cinema.
O empenho branco no apagamento e na invisibilidade do talento negro é vergonhoso, impiedoso, indigno.
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