Baseado no livro do estadunidense L. Frank Baum (lançado em 1900), o Mágico de Oz não é apenas um clássico hollywoodiano de 1939. É uma obra que, lida sob a ótica feminista, revela uma crítica profunda ao patriarcado. O grande Mágico, suposto soberano, não passa de uma fraude escondida atrás de cortinas — metáfora perfeita para a fragilidade das estruturas masculinas de poder. Quem realmente governa Oz são as mulheres: Glinda e a Bruxa Má do Oeste. Essa inversão, ainda que disfarçada em fantasia, antecipa debates que hoje são centrais no feminismo.

Décadas depois, Wicked radicaliza essa leitura ao transformar a Bruxa Má em protagonista injustiçada. O que antes era símbolo de maldade torna-se representação da mulher que ousa desafiar o sistema e, por isso, é demonizada. Essa releitura dialoga diretamente com o feminismo interseccional, que denuncia como mulheres — especialmente negras, indígenas, LGBTQIA+ e periféricas — são historicamente silenciadas, marginalizadas ou retratadas como “vilãs” por não se encaixarem nos padrões patriarcais e coloniais.

Dorothy, por sua vez, já era um ícone de protagonismo feminino: uma jovem que conduz sua própria jornada, inspira seus companheiros e mostra que liderança não é atributo exclusivo dos homens. Em Wicked, essa lógica se expande para a sororidade: Glinda e Elphaba (a Bruxa Má) encarnam os conflitos e alianças entre mulheres, revelando que a luta feminista não é homogênea, mas plural, marcada por tensões e solidariedades.

Na cultura pop contemporânea, essa releitura ecoa em movimentos que exigem representatividade real: mulheres negras como protagonistas, personagens LGBTQIA+ que não sejam caricaturas, narrativas que valorizem corpos diversos e histórias que não reduzam mulheres à função de coadjuvantes. Assim como Wicked ressignifica a Bruxa Má, o feminismo atual exige que a cultura pop redefina todas as mulheres que foram apagadas ou distorcidas.

Em tempos de luta por igualdade, O Mágico de Oz e Wicked nos lembram que a verdadeira magia está em recontar histórias sob a ótica feminina e interseccional. É nesse gesto que reside a força transformadora: derrubar fachadas patriarcais, celebrar a pluralidade das mulheres e construir narrativas em que elas não apenas sobrevivem, mas governam.
O sofrimento de Judy Garland durante a produção do filme de 1939
Os bastidores de O Mágico de Oz (1939) foram marcados por abusos e condições extremamente difíceis. Judy Garland, então com apenas 17 anos, sofreu assédio, exploração e pressões psicológicas durante as filmagens.
Os executivos da MGM a obrigavam a manter uma imagem infantil e angelical. Para isso, controlavam sua alimentação e aparência. Os executivos da MGM a obrigavam a manter uma imagem infantil e angelical. Para isso, controlavam sua alimentação e aparência.
Segundo Sid Luft, ex-marido de Garland, ela foi assediada sexualmente por membros do elenco durante as filmagens, incluindo os atores que interpretavam os Munchkins. Garland relatou que era constantemente alvo de comentários e toques inapropriados, sem qualquer proteção por parte do estúdio. Além disso, sofria humilhações públicas e agressões verbais, como tapas e broncas de diretores, para “manter a disciplina”.

Os executivos da MGM a obrigavam a manter uma imagem infantil e angelical. Para isso, controlavam sua alimentação e aparência.
Essas experiências marcaram profundamente sua vida. O abuso físico e emocional sofrido nos bastidores de O Mágico de Oz contribuiu para problemas de saúde mental e dependência química que a acompanharam até a morte precoce, aos 47 anos.

O Mágico de Oz é lembrado como um marco do cinema, mas seus bastidores revelam o lado sombrio da indústria hollywoodiana dos anos 1930: exploração de menores, assédio, condições inseguras e abuso sistemático. Judy Garland, a estrela que encantou o mundo como Dorothy, foi também uma das maiores vítimas desse sistema.
A estrela que virou símbolo de resistência
Judy Garland transcendeu o cinema para se tornar um ícone cultural e político. Sua interpretação de Over the Rainbow não foi apenas uma canção de esperança, mas acabou se tornando um hino de sobrevivência para gerações de pessoas LGBTQIA+. A metáfora do “arco-íris” ganhou vida própria e, décadas depois, se transformou na bandeira que representa a diversidade sexual e de gênero.
Garland foi explorada pela indústria de Hollywood desde a adolescência: submetida a dietas abusivas, uso forçado de medicamentos e assédio nos bastidores. Essa trajetória de dor e resistência ecoou na comunidade LGBTQIA+, que também enfrentava marginalização, violência e invisibilidade. Sua vulnerabilidade pública — marcada por colapsos emocionais e pela luta contra vícios — não a afastou dos fãs, mas a aproximou deles. Ela se tornou um espelho das lutas de quem vivia à margem.

Nos anos em que ser gay era criminalizado, a expressão “amigo de Dorothy” virou um código secreto entre homens que amam outros homes para se reconhecerem sem risco. Dorothy, a personagem de Garland, era vista como alguém que acolhia os diferentes: o Espantalho sem cérebro, o Homem de Lata sem coração, o Leão sem coragem. Essa narrativa de aceitação e amizade se tornou metáfora para a comunidade LGBTQIA+.
A morte de Judy Garland, em junho de 1969, antecedeu em poucos dias a Revolta de Stonewall, marco da luta pelos direitos LGBTQIA+. Muitos frequentadores do bar Stonewall eram fãs de Garland e sentiram sua morte como um catalisador emocional. A rebelião contra a repressão policial foi, em parte, alimentada pelo luto coletivo de uma comunidade que via nela uma aliada simbólica.
Hoje, em tempos de feminismo interseccional e luta por representatividade, Garland continua relevante. Sua história denuncia como mulheres foram exploradas pela indústria cultural e como figuras femininas fortes foram demonizadas. Ao mesmo tempo, sua imagem inspira a cultura pop contemporânea a valorizar narrativas plurais: protagonistas negras, trans, lésbicas e periféricas que, como Dorothy, buscam atravessar o arco-íris em direção a um futuro de liberdade.
Garland não viveu para ver o arco-íris se tornar símbolo oficial da comunidade LGBTQIA+, mas sua voz em Over the Rainbow permanece como trilha sonora da luta. Ela é lembrada não apenas como estrela, mas como ícone de resistência, cuja vida e obra se entrelaçam com a história da emancipação queer.



