A Poética da Solidão na obra “Sonhos do Trem” da Netflix

Baseado na novela homônima de Denis Johnson, “Sonhos do Trem” é uma das obras mais emblemática da Netflix de 2025, estabelecendo um diálogo profundo entre o minimalismo narrativo e a grandiosidade visual.
Dirigido por Clint Bentley, o filme é uma meditação melancólica sobre a solidão, o progresso industrial e a resiliência humana no início do século XX, sendo recebido pela crítica internacional como uma obra prima da contemplação existencial.

Sonhos de Trem @ XLG Image

A trama acompanha a vida de Robert Grainier (o ator australiano Joel Edgerton, o mesmo da série “Matéria Escura”, da Apple+), um órfão que se estabelece em Panhandle de Idaho para trabalhar na expansão das ferrovias e na indústria madeireira.
Ele é um trabalhador comum que testemunha o nascimento da modernidade industrial enquanto vive em isolamento quase absoluto nas florestas do Noroeste Pacífico.
O ponto de inflexão dramática ocorre quando, após uma temporada de trabalho exaustivo na construção da ponte Spokane International, Grainier retorna para casa e descobre que um incêndio florestal devastador consumiu sua cabana. Sua esposa Gladys (Felicity Jones), e sua filha pequena desaparecem nas chamas.

Sonhos de Trem @ divulgação

A partir desse evento, o filme transita de um drama histórico para uma meditação espiritual sobre o luto. Grainier passa o restante de seus dias assombrado por visões e memórias, incluindo a aparição recorrente de um trabalhador chinês cuja morte ele presenciou nos trilhos e a misteriosa figura de uma garota loba que ele acredita ser sua filha sobrevivente.
A direção de Clint Bentley é marcada por uma paciência quase transcendental, herdando a estética contemplativa de cineastas como Terrence Malick. Bentley evita o melodrama fácil para focar na relação sensorial entre o protagonista e a natureza selvagem do Noroeste Pacífico. O roteiro, adaptado com uma fidelidade poética à prosa de Johnson, utiliza o silêncio como ferramenta narrativa fundamental. A escrita opta por elipses temporais que mimetizam a natureza fragmentada da memória humana, transformando a trajetória de Robert Grainier em uma jornada que transcende o tempo físico para ocupar um espaço puramente onírico.

Atuações

Sonhos de Trem @ divulgação

Joel Edgerton entrega o que críticos dos Estados Unidos e da Europa classificam como a atuação definitiva de sua carreira. No papel de Grainier, um trabalhador ferroviário que enfrenta perdas devastadoras, ele utiliza uma economia de gestos e expressões que comunica uma dor insuportável sem a necessidade de grandes monólogos. A crítica do jornal britânico The Guardian descreveu sua performance como magistralmente contida e profundamente dilacerante, destacando a capacidade do ator em habitar o isolamento absoluto de um homem que se torna uma relíquia viva de uma era em extinção.

Produção

Sonhos de Trem @ divulgação

Visualmente, o filme é um triunfo da cinematografia moderna. A fotografia do brasileiro Adolpho Veloso explora a luz natural para capturar a vastidão das florestas e a brutalidade das ferrovias, criando um contraste entre a beleza sublime e o perigo constante do ambiente. A imprensa europeia, em especial o jornal Le Monde, observou que a textura da imagem remete a processos fotográficos do início do século XX, estabelecendo um vínculo direto com a iconografia histórica do período.
A montagem contribui para a sensação de fluidez onírica, fundindo o passado e o presente de forma orgânica, o que justifica o título da obra ao sugerir que a vida do protagonista é um comboio de lembranças em movimento constante. A revista Variety ressaltou que a montagem preserva o ritmo contemplativo da prosa de Denis Johnson, permitindo que os cortes funcionem como fragmentos de memória. Essa técnica de montagem aproxima o filme do conceito de cinema de fluxo, onde a sucessão de eventos obedece a uma lógica sensorial.
A trilha sonora, descrita por publicações europeias como atmosférica e minimalista, utiliza sons ambientes e instrumentos rústicos para compor uma paisagem sonora que envolve o espectador em um estado de transe.

Estrutura

Sonhos de Trem @ XLG Image

A análise acadêmica de Sonhos do Trem revela uma preocupação com a fenomenologia do espaço. A narrativa acompanha Grainier em sua função de trabalhador braçal na expansão das ferrovias, utilizando esse contexto para discutir a transformação da paisagem natural em capital infraestrutural. O filme fundamenta sua estética na observação de processos, onde o tempo da natureza colide com o tempo da máquina.
Do ponto de vista da teoria cinematográfica, a direção de Bentley utiliza a profundidade de campo e a iluminação natural para estabelecer um diálogo entre o sujeito e o ambiente.
O desaparecimento da família do protagonista, causado por um incêndio, não é tratado como um evento de clímax dramático, mas como uma variável da vulnerabilidade humana perante as forças ambientais e o acaso.
O silêncio atua como recurso narrativo central, transferindo o peso da comunicação para a composição visual e para a interação física do ator Joel Edgerton com os elementos do cenário.

Sonhos de Trem concorre ao Critics Choice Awards 2026 e ao Satellite Awards 2026 nas categorias de Melhor Filme, Ator, Roteiro Adaptado, Fotografia e Canção (“Train Dreams”, de Nick Cave e Bryce Dessner). Também concorre no Globo de Ouro 2026 para Ator em Filme Dramático e Melhor Canção.

A fotografia de Adolpho Veloso ganhou na Associação de Críticos de Filmes de Los Angeles, Boston e San Diego, o roteiro ganhou o National Board of Review.

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